quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Imitação de vida - Martha Medeiros.


[...] Pessoas que passam por uma grande tragédia pessoal têm vontade de dormir para sempre. Nos dias posteriores ao fato, não encontram forças para erguer uma xícara de café ou pentear o cabelo, e sorrir passa a ser um ato transgressor, que gera uma culpa imensa, pois é como se estivéssemos nos curando do sofrimento. Passada a fase de hibernação voluntária, porém, é isso que tem que acontecer: curar-se. Voltar a viver. Mas como, se já não existe a alegria original? Rastreando a alegria perdida para tentar imitá-la.

Respeito quem consegue reproduzir uma vida normal mesmo trazendo dentro de si uma dor permanente, e respeito ainda mais quem consegue transformar essa dor em ações solidárias, como a que resultou no projeto Vida Urgente, idealizado por um casal que perdeu um filho num acidente de automóvel e que hoje se dedica a evitar que outras famílias passem pelo mesmo drama. Isso deixa de ser uma imitação de vida, isso é renascimento espontâneo e glorioso.

A vida como ela é, ou deve ser, inclui festas de Natal, férias na praia, bate-papos informais com amigos, comemorações de aniversário, sorrisos para fotos. Coisas triviais que são fáceis e prazerosas para quem tem o coração leve, mas que podem ser penosas para quem possui recordações que não se quer, nem se pode, abandonar. Para essas pessoas, fatiar um peru, fazer um brinde, falar banalidades, até mesmo um banho de mar, tudo tem que ser reaprendido, tudo tem que voltar a ser um ato inocente.

Imitar essa inocência não é um processo fácil e tampouco natural, mas é uma sobrevivência legítima. Mais ainda: é um ato de generosidade, pois revela a consciência de se continuar a pertencer a uma sociedade e de exercer um papel importante na vida de quem nos rodeia.
[...] Que bom ter um roteirista à mão para facilitar as coisas. Não havendo, o jeito é plagiar a própria vida, que sempre é melhor do que entregar os pontos.

Escrito em Junho de 1999 por Martha Medeiros.

Em homenagem à todos que sabem como é sentir e lidar com essa dor. Em especial para minha família e eu que há quase um ano atrás passamos a nos sentir compreendidas por cada linha deste texto.

Pai, nós te amaremos por toda eternidade. (F)

Beijo, C.

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