sábado, 12 de julho de 2014

Trechos de "A noite das mulheres cantoras" - Lídia Jorge


"Acreditar que cada um devia buscar nas suas próprias forças a única resposta para enfrentar os obstáculos. Semelhante estoicismo costuma criar cínicos ou totalitários."

"Dizem que a lembrança é a mamã da História. É mentira, só o registro é o pai da História, e também o seu filho. De resto, lembrança é lembrança, fica e mora conosco, mais nada. Tão longa e tão curta quanto a nossa vida. A nossa vida, se bem vivida, não é da História, é do seu sentido."

"Está entendido. Moramos na mesma casa, mas cada um de nós vive em seu mundo."

"(...) Mas nada iria passar-se como eu imaginava. Ao lado da expectativa, a realidade criava o seu próprio programa, há muito que eu sabia que assim era. Também sabia que a parte que nos decepciona pode ser recompensada pela parte que nos surpreende."

"A relação que determinadas pessoas mantinham com outras não poderia ser qualificada a partir de um só ato isolado, mas essa relação deveria ser evitada sempre que impedisse a realização do próprio. (...) Pessoas havia que tanto nos amavam quanto nos impediam. Essas, deveríamos evitá-las para nos concentrarmos em exclusivo naquilo que é importante."

"Por essa altura eu percebi como o carisma pode ser um fluxo que ao mesmo tempo ofusque e seduza. Provoque esquecimentos e paragens no tempo, hiatos irrecuperáveis, como se conta das aparições benignas."

"Mas nem tudo o que é inesquecível deve ser descrito. A maior parte da nossa experiência inesquecível pode permanecer para sempre indizível."

"Aprendo com esses dias o que toda a gente aprende, mas nem toda a gente sabe. Que só o nada, e em abstrato, é estático. A vida humana, errante, a relação entre nós todos, errática. Lutar contra essa deriva é o mesmo que tentar parar o vento com um chapéu de palha. O amor é esse chapéu de palha."

"(...) Que só dispondo de uma vida nunca daremos resposta àqueles que exigem que nos separemos em partes que são inseparáveis. Não podemos ser de dois mundos."

"O que há de repulsivo na felicidade é a rapidez com que esse estado transforma a pessoa por ele tocada numa ilha de triunfo."

"As nossas contas pareciam os cálculos da NASA. Mas até os voos do vaivém espacial estão sujeitos aos efeitos da meteorologia. Ainda bem. Quando um dia deixarmos de ter esses imponderáveis ou seremos deuses ou seremos animais, e a tendência inclina-se mais para os segundos do que para os primeiros."

"E como sempre acontece na vida, aquilo que existia disperso e por acaso fechava-se num círculo a que se poderia, com algum discernimento, atribuir um significado."

"O fim natural de todos os episódios coletivos, alegres ou trágicos, são canções."

"- Ela foi dormir durante duzentos milhões de anos, foi dormir para todo o sempre", disse Gisela, "Pois é esse todo o sempre que uma pessoa não consegue aceitar. Se houvesse ao menos alguma coisa que interrompesse essa eternidade, se houvesse..."

"- Vamos por partes. Se pensarmos de forma lúdica, o que poderemos concluir? Que se uma de nós morreu, e todas nós sentimos que morremos um pouco com a sua pessoa, então ela ainda está viva para nós, e por isso em parte ela sente como nós, e logo em parte ela quer o que nós quisermos. Mas nós ainda estamos confundidas, ainda não sabemos o que queremos. Ela, a parte dela em nós não morreu, ela sabe. A perspectiva da nossa companheira desaparecida diz-nos que uma pessoa que foi capaz de se entregar a um sonho da forma tão exclusiva como ela o fez, é porque acreditava em si mesma e em nós, e tinha feito da nossa música a sua própria casa".

"Mas eu compreendo que vocês possam não sentir o mesmo que eu. Somos diferentes, e a diferença vê-se muito mais perante a infelicidade do que na hora da alegria. Eu sei bem."

"Há fanáticos para tudo, estes são fanáticos pelos astros. Quem procura no Espaço é porque não encontra o que deveria desfrutar na Terra."

"Compreende... Não me cabia a mim ensinar o que a ti te compete aprender. Nesse estado de alma ninguém tem o direito de intervir. Tudo conta, nesse estado de alma, minuto a minuto, segundo a segundo. Quanto mais encheres o teu saco, mais terás de onde te alimentar no futuro. Olha que não acontece duas vezes. E a vida só tem interesse enquanto essa aventura existe, ou enquanto esperas pela aventura, ou enquanto te lembrares da aventura."

"A eternidade somos nós. Desaparecer entre os que nos conhecem, assim, como uma bola de sabão, é que não se consegue aceitar. Partirmos sem impressionar ninguém, isso é que é o verdadeiro óbito. Aliás, deveríamos perguntar-nos para que pode prestar aquilo que temos de mais certo, a nossa morte. Acaso uma forma de sermos úteis não seria partilhá-la, de modo a prolongarmos a nossa presença até o fim, oferecendo-a aos outros?"

"Mesmo que mais nada em comum nos viesse a juntar no futuro, bastaria o fato de sabermos que estávamos vivas, e de sermos em parte muito diferentes, e em parte muito parecidas, para não podermos dizer adeus."

"Cada coisa brilhava por si, mas elas não rodopiavam em conjunto segundo uma qualquer ordem legível."

**** Esta obra integra as leituras obrigatórias da UFRGS 2015.
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